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Elsa Gonçalves

Obituário

A Elsa Gonçalves dedicou as suas horas mais felizes ao estudo da lírica dos trovadores galegoportugueses e as suas horas mais (felizmente) atormentadas a escrever-nos sobre o incomparável conhecimento acumulado nesta área. Todos os seus alunos e colegas guardarão memória de a ver saltitar veloz, de fac-simile em fac-simile, de livro em separata, de estante em estante, na busca de uma resposta, explorando uma hipótese. Talvez nem todos se tenham apercebido dos tratos de polé que a escrita lhe merecia, até por fim exprimir, com exato rigor, o que pretendia transmitir. A Adília Lopes poderia ter escrito o poema Arte Poética para a Elsa Gonçalves: «Escrever um poema / é como apanhar um peixe / com as mãos / [...] o peixe debatese / tenta escapar / escapa-se / eu persisto / luto corpo a corpo / com o peixe / ou morremos os  dois / ou nos salvamos os dois / tenho de estar atenta / tenho medo de não chegar ao fim / é uma questão de vida ou de morte / quando chegou ao fim / descubro que precisei de apanhar o peixe / para me livrar do peixe / livro-me do peixe com o alívio / que não sei dizer (Dobra,2014, p. 13).

Vivendo nesta combinação de felicidade pelo desafio intelectual e de extrema autoexigência no rigor, tanto da investigação quanto no da escrita, a Professora Elsa Gonçalves tornou-se sinónimo incontestado de conhecimento sobre a poesia dos trovadores. Costumava dizer, rindo, que se dedicava à «microfilologia», numa alusão às questões aparentemente pequenas que, por vezes, a ocuparam e à minúcia das suas abordagens. Mas a bibliografia que nos deixou é, e ermanecerá, fundamental, não só pelas conclusões a que chegou em cada caso concreto, mas pelo exemplo dado em cada caminho percorrido. Exemplo maior constitui o estudo dedicado à Tavola Colocciana, índice do cancioneiro da Biblioteca Nacional (antigo Colocci-Brancuti), na qualidade de peça argumentativa no âmbito da discussão em torno do stemma codicum da lírica galego-portuguesa. Muitos outros exemplos poderiam invocar-se de como a resolução de concretos problemas científicos se tornaram lições de método e rigor. É o caso do estudo dedicado às sátiras de Don Dinis contra Joam Bolo, cujo alcance reinterpretou recorrendo a fundamentação exemplar. Ou o de «Tradição manuscrita e isometria», sobre a prática editorial de emendar lições manuscritas para restabelecer a isometria. Destacam-se na bibliografia da Elsa Gonçalves exemplos fundamentais da obrigação de atitude crítica, de questionamento permanente, tanto diante das lições manuscritas, quanto das edições críticas tornadas vulgatas. Quase sabemos de cor, por exemplo, a argumentação sabiamente fundamentada que levou à emenda de lições como «de Roma ata Cidade» ou «cóme-o praga por praga». Sem esquecer estudos que se tornaram pontos de partida para tantos outros, quer pelo caráter modelar, quer por constituírem pontos de partida imprescindível, como os que dedicou às cantigas ateúdas e ao sistema das rubricas atributivas e explicativas.

Nos corredores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde ensinou entre 1977 e 1989, tanto quanto nas salas de aula, a aproximação bastava para que a autoridade se instalasse. E sempre foi afável, no entanto; assim como gostava de rir quando a faziam rir, retribuindo com graça e inteligência. Embora sempre minuciosamente preparadas e empenhadamente transcorridas, as horas de ensino não eram horas felizes para a Elsa Gonçalves. No entanto, a sua docência na Universidade de Lisboa, mas também noutros lugares do mundo, onde participou em cursos de curta duração, marcou gerações de estudantes, tornados professores e investigadores, definitivamente cativados para o estudo da Literatura Medieval e da Crítica Textual. Em todos nós, reconhecemos a voz da Professora, sempre que nos lembramos da importância de convocarmos múltiplos saberes para o estudo da literatura, como a História, a Retórica, a Linguística e a Crítica Textual. O exemplo é o dela; o exemplo que foi cultivando desde Roma, onde esteve associada ao Leitorado de Português de La Sapienza e onde encontrou interlocutores especialmente estimados pelo desafio intelectual, como os Professores Giuseppe Tavani, Luciana Stegagno Picchio, Anna Ferrari, Valeria Bertolucci Pizzorrusso. Envolvida ali nas atividades do Instituto de Filologia Românica de La Sapienza, dirigido por Aurelio Roncaglia, que sempre considerou o seu mestre, regressou a Portugal com um pensamento crítico e um modo de investigação sobre a literatura medieval galego-portuguesa, cuja marca continua a reconhecer-se na investigação e no pensamento de muitos de nós, especialmente em Portugal e na Galiza, mas não só. Quando, em 1997, recebeu o grau de «Doutor Honoris Causa», pela Universidade de Lisboa, o seu padrinho, Professor Aires do Nascimento, sublinhava já este feito.

Da generosidade intelectual da Elsa Gonçalves podemos testemunhar todos aqueles a quem nunca negou consulta sábia, laboriosamente fundamentada; e somos muitos, entre os que lhe escreviam de longe, e os mais próximos, os do  Grupo de Filologia do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, a que pertenceu desde que foi dirigido pelo Professor Lindley Cintra.  Mas, em cada encontro, a Elsa Gonçalves, a nossa Elsa, de olhar vivo e sorriso aberto, nunca nosperguntava só por artigos, congressos, projetos filológicos. Perguntava-nos invariavelmente pelos filhos, pelos pais, por todos os nossos, que não esquecia nem confundia. E sempre se dispunha a ouvir as respostas, de exclamações e interrogações muito prontas, mesmo quando a felicidade dos livros abertos em sossego pacientemente a esperava, e desesperava. Assim praticava outra generosidade, que a tornou filóloga especialmente acarinhada, geradora de saudade permanente pelos quatro cantos do mundo, onde por ela se pergunta com ar sempre embevecido. Tornar-se assim amado é assinalável arte e rara ciência. Em Lisboa fomos invejados, por viver aqui a Elsa Gonçalves, junto ao largo Tejo. Agora já não, porque nos deixou a 10 de fevereiro. Para nosso tão grande desgosto.Ângela Correia 11-02-2022