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Luis Filipe Lindley Cintra

Muito cedo admirado no restrito meio científico português da época e nalguns círculos internacionais, entre filólogos, linguistas e historiadores, distinguido pelos alunos desde os primeiros anos de docência pelas suas aulas exemplares, Luís Filipe Lindley Cintra tornou-se a partir de certa altura o professor mais conhecido e mais invocado da Universidade portuguesa e chegou a ser aquilo a que geralmente se chama uma figura pública. Houve nele uma confluência invulgar de dedicação solitária ao estudo e à ciência, de interesse genuíno por uma grande diversidade de pessoas e de vidas, e de disponibilidade para se solidarizar activamente com causas individuais e colectivas, de que encontrou a matriz na própria relação pedagógica.

Os seus trabalhos escritos e a sua acção didáctica originaram e alimentaram uma fase nova do estudo dos textos medievais, em especial de historiografia, criando paradigmas metodológicos que se revelaram fundamentais para a investigação histórica do mesmo período, e em diversos campos da filologia e da linguística constituíram uma contribuição inovadora, tanto pelos resultados das suas próprias análises e interpretações como pelo lançamento de projectos que motivaram noutras pessoas interesses idênticos e foram formando investigadores.

Dividindo a sua actividade pela Faculdade de Letras e pelo Centro de Linguística, ambos da Universidade de Lisboa, desenvolveu com persistência uma notável acção de direcção, organização e estímulo, em muitos casos inaugurando campos de investigação que continuam a frutificar. O Centro, que foi obra sua, integrou ao longo de anos um número apreciável de investigadores e uma das melhores bibliotecas do país nas respectivas áreas de estudo, e foi editor de livros (Vidas e paixões dos Apóstolos, fac-símile do Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana, Bibliografia de textos medievais portugueses) e da importante revista Boletim de Filologia, que Cintra dirigiu a partir de 1950. Aqui saíram, nomeadamente, as «Normas de transcrição para textos medievais portugueses» (1973), ainda hoje de consulta útil. Entre os grupos de estudo que promoveu no Centro conta-se um dedicado à fonética, matéria de que não era especialista mas de que foi o primeiro professor na Faculdade, onde fez instalar um Laboratório de Fonética extremamente bem equipado.

Na Faculdade de Letras, além da orientação de teses de licenciatura, doutoramento e mestrado, as suas aulas, que eram realmente lições, ficaram célebres. Poucos professores as souberam ali dar como ele. Todos os assuntos se tornavam claros, integrados os fenómenos nos seus contextos, relacionados os factos com lógica e inteligência, definidos os conceitos de maneira suficiente e sem aditamentos supérfluos. Era um ensino que não procurava a problematização e visava eliminar os motivos de interrogação. Mas o saber em que assentava fora de tal maneira reflectido a partir da análise rigorosa de dados e documentos que a segurança que pretendia transmitir aparecia legitimada e por isso convincente. Dali puderam muitos partir depois para novas hipóteses. No entanto, passados quarenta ou cinquenta anos, é possível recorrer ainda à erudição adquirida nas suas aulas, tão bem apresentada foi ela à memória e tão armada estava contra eventuais futuros desmentidos. Em história e gramática comparadas das línguas românicas, em língua, historiografia e história da literatura medievais e em dialectologia — as suas disciplinas de eleição —, ao edifício diligentemente expandido e no essencial completado pelos finais da década de 60, que expunha perante os alunos, sobrevieram desde então novidades a acrescentar, mas poucas foram as alterações de conceito que se impuseram.

Outro tipo de popularidade, agora transbordando largamente da sua Faculdade, veio juntar-se à do mestre respeitado pelo seu saber quando, em 1962, se empenhou de forma activa na luta dos estudantes em defesa de uma nova universidade, e daí em diante em diversas intervenções cívicas, até 1974.

A sua vocação para o trabalho intelectual e capacidade de eleger caminhos certos para chegar a resultados seguros revelaram-se, contra o que seria de esperar, logo no princípio. Nesse princípio de obra e de carreira de uma felicidade rara — que lhe fez dizer mais tarde que passara o resto da vida a competir consigo próprio — terminou aos vinte e seis anos e apresentou como tese de doutoramento na Faculdade de Letras um dos trabalhos mais importantes do século para a história literária da nossa Idade Média: a demonstração da autoria portuguesa, ligada a D. Pedro, conde de Barcelos, da extensa Crónica Geral de Espanha de 1344 que, depois de absorver grande parte da tradição historiográfica hispânica anterior, deixara delimitado o espaço onde veio a ganhar forma décadas depois, com o advento da dinastia de Avis, a Crónica do Reino de Portugal. O volume de introdução à edição crítica do texto contém, de facto, uma história da historiografia portuguesa desde as origens até ao começo do século XV. A amplidão da matéria abrangida, em que couberam todos os elos e ramificações dessa grande cadeia de textos, e o rigor e a adequação do método — dotado de óbvias potencialidades como modelo para estudos futuros — logo provocaram enorme interesse em Portugal e em Espanha, na verdade mais nesta do que naquele. Espanhola era a escola de historiadores e filólogos de que Cintra sempre se considerou devedor, com Menéndez Pidal, seu mestre, à frente, e espanhóis os leitores que então melhor entenderam as suas decisivas descobertas e observações.

Voltou a obter conclusões de carácter histórico através da análise linguística no seu estudo minucioso de A linguagem dos Foros de Castelo Rodrigo, outra prova académica, em 1959. Desta vez intervinha também a dialectologia, matéria que o atraíu em parte pela oportunidade que lhe ofereceu de deixar o gabinete e ir conhecer a população rural do país. Neste campo, realizou estudos sobre a definição das fronteiras de certos traços linguísticos dentro do território nacional.

Os seus artigos sobre as formas de tratamento em português e a sua tese de licenciatura, recentemente publicada, sobre O ritmo na poesia de António Nobre, ilustram a variedade de perspectivas com que observava os fenómenos da língua; posterior de poucos anos à Crónica e retomando materiais então usados, o trabalho «Sobre a formação e evolução da lenda de Ourique» trouxe à questão específica e ao seu contexto uma clareza inédita.

Como disse José Mattoso, que o entrevistou em 1989, a revitalização e a renovação dos estudos de história medieval trouxeram a primeiro plano o valor decisivo da obra de Cintra como modelo de abordagem do documento escrito e de conjugação produtiva de saberes de áreas diversas.

Teresa Amado