Mário (Gonçalves) Martins, S.J. (1908-1990). O epitáfio podia ser breve: nasceu em 17. 2. 1908 (Zibreira – Torres Novas) e faleceu em Lisboa, 30. 6. 1990. Deve dilatar-se para a dimensão da sua obra. Conhecemo-lo com uma vida já longa abençoada, sem dúvida: amado por Deus e pelos homens, não lhe faltou a capacidadede, com a sua palavra, amansar monstros (cf. Eccl. 45, 1-2), que, embora de papel, a muitos assustam. Os que estiveram no IV Congresso da AHLM (Lisboa, Outubro, 1990) prestaram-lhe homenagem sentida, ao saberem que a Irmã Morte se antecipara.
Erudito e justo ficou na memória de todos quantos o conheceram ou leram os seus ensaios. Tendo entrado no Colégio das Missões Ultramarinas (em Cucujães, onde chega com o 5º ano de preparatórios), passa aos vinte anos para a Companhia de Jesus e nela faz o seu percurso académico, por lugares diversos (Braga, Enghien / Bélgica, Salamanca), fugindo ao monstro da guerra até regressar à pátria. Em 1943, fixa-se em Lisboa, integrado o corpo redactorial da revista Brotéria.
Atraiu-o como campo de estudo o período medieval, onde demonstrou raras qualidades de inteligência e de sensibilidade literária. Partindo das fontes latinas, depressa se devota ao universo dos manuscritos medievais, particularmente dos códices alcobacenses, ainda pouco desbravados, na Biblioteca Nacional em Lisboa. Os ensaios, que, a partir da década de 1950, publica com regularidade, chamam a atenção, pela novidade dos horizontes que rasga, por entre homens e livros. Deixa encanto na prosa e enleia nas leituras que propõe – pelas correlações temáticas e textuais que estabelece, pela largueza nas perspectivas que lança ao abarcar a variedade dos géneros literários; as análises são tanto mais operativas quanto articulam associações em campos menos frequentados. Nele a intuição e a sensibilidade literária desdobram-se em capacidade criativa (que o levará ocasionalmente ao campo da ficção pessoal) e dão às suas construções leveza e graciosidade em que a poesia nunca é penhorada à erudição de que se alimenta nem o juízo crítico sacrifica a elegância do enunciado. Com ironia e humor entende e comenta situações humanas que surpreende nos textos literários (O riso, o sorriso e a paródia na Literatura Portuguesa de Quatrocentos, Lisboa, 1987; Sátira na Literatura Medieval Portuguesa – séculos XIII e XIV, Lisboa, 1987); com empatia percebe os processos literários medievais e as memórias de que se alimentam (Alegorias, símbolos e exemplos morais na Literatura Medieval Portuguesa, Porto, 1985; A Bíblia na Literatura Medieval Portuguesa, Lisboa, 1979); em espírito devocional explora formas populares ou cortesãs da piedade medieval (Nossa Senhora nos romances do Santo Graal e nas Ladainhas Medievais e Quinhentistas, Braga, 1988; O Livro de Horas de D. Duarte, Lisboa, 1971); com jovialidade atende ao espírito dos tempos – na intemporalidade das alegrias, sem angústias da vida atravessada pela morte que conduz à eternidade (Introdução histórica à vidência do tempo e da morte, em 2 volumes, Braga, 1969); adverte facilmente em referências culturais que passam desapercebidas a outros e reconstrói o mundo a que remontam (ex., "Dum poema inglês de John Gower e da sua tradução do português para o castelhano", Didaskalia, 9, 1979, pp. 413-432: a hipótese vem mais tarde a confirmar-se na descoberta de testemunho na Biblioteca do Palácio, em Madrid – está datada de Ceuta, 1430, em cópia de João
Barroso).
Na sua vasta produção cabem ensaios adaptados a públicos diversificados e à tipologia das revistas que solicitam a sua colaboração. Em versões similares, desdobraos em volumes autónomos: Estudos de Cultura Medieval, I, II, III, Lisboa, 1980-1983. Em plano erudito, aprecia a combinação da filologia de pesquisa com o comentário a prolongamentos de recepção temática ou estrutural (ex., "A espada, o amor e a morte desportiva, na «Chanson de Roland», nos romances arturianos, na «Brasileira dos Prazins» e na «Hora e vez de Augusto Matraga»", Memórias da Academia das Ciências, 1982, pp. 325-344). Em recuperação do tempo que flui, celebra centenários (ex., "Pedro Hispano: um mestre da arte de pensar", ib., 18, 1977, 181-192). Já em Estudos de Literatura Medieval, Braga, 1956, que caracteriza como "sondagens na literatura portuguesa", reunira quarenta estudos para "mergulhar até às raízes de certos problemas literários da nossa Idade Média, alguns deles com a aparência de ilhotas perdidas no mare magnum dos velhos códices adormecidos". No seu horizonte de leituras cabem os Padres da Igreja e o Breviário, as Cantigas e as obras chegadas de fora, lidas no original ou vertidas para o romance local, qualquer que fosse a sua procedência ou a sua forma de origem e de integração (hagiografia, milagres, romances de cavalaria, obras de piedade e obras de especulação). Com manifesto júbilo, revela: "Crescemos com Cister: como um motivo musical que vai e torna a voltar, encontramos os códices de Alcobaça quase ao virar de cada folha destes estudos e não somente deste capítulo". Com justa satisfação pode demonstrar que "da nossa literatura medieval temos alguma coisa mais para conhecer do que meia dúzia de poesias dos cancioneiros, os cronistas, com Fernão Lopes à frente, e os títulos secos doutras obras de conteúdo um tanto nebuloso". Na busca de identidades, dentro do largo panorama cultural europeu, integra as literaturas hispânicas e reconhece os filões que da Europa chegam em partilha de tradição comum.
Muitos dos estudos de Mário Martins são de verdadeiro iniciador; os que se internaram por esse universo, com frequência a ele voltaram para retemperar forças. Em estudos monográficos comprova a sua capacidade de estruturar especulações e atender a pontos menos atendidos em homens ou géneros literários para depreender encadeamentos: em Correntes de Filosofia religiosa em Braga nos séculos IV a VII, Porto, 1950, encanta-o perceber a persistência de uma cultura que não esquece as fontes e as prolonga (em Martinho de Braga, Pascásio de Dume, nas correntes monásticas) vislumbra traços de cultura que dá consistência ao noroeste peninsular e não se escandaliza com os hereges do priscilianismo; em Laudes e Cantigas Espirituais de Mestre André Dias, Singeverga, 1951, desvenda influências da poesia religiosa italiana em formas locais; em Vida e obra de Frei João Claro, Coimbra, 1956, persegue o percurso universitário de um cisterciense; em Peregrinações e Livros de Milagres na nossa Idade Média, Lisboa, 1956, irmana-se com os peregrinos dos santuários e descortina a literatura de peregrinação e os relatos de milagres; apercebe-se da "intemporalização medieval", desfruta da horaciana fugacidade dos dias, mas penetra no claustro para se entregar ao trabalho e ao louvor divino ou à reflexão sobre o sentido da vida humana no prolongamento dela para além do tempo, para a eternidade (sem se assustar com as macabras Danças da Morte), delicia-se com "O ciclo franciscano na nossa espiritualidade medieval" (Biblos, 27, 1951, 141-247).
Ao ser recebido na Academia de Ciências de Lisboa, em elogio ao seu predecessor (F. Rebelo Gonçalves), a 22 de Março de 1973, deixou Mário Martins o retrato de si próprio: "Lado a lado com a austeridade científica da palavra em si mesma, procuro erguer os andaimes circunstanciais da ciência humana, cultural e histórica em torno da forma verbal (...), nas literaturas medievais (incluindo a latina), onde já afloram e desabrocham a juventude, a sensibilidade e o pensamento dos tempos modernos".
Aceita Mário Martins fazer parte de Academias, para que é convidado, porque elas lhe aparecem com a missão principal de "unir os homens de todos os sectores e de todas as orientações, para assim nascer a rosa-dos-ventos de todo o saber", que ele gosta de manejar, buscando sempre novos rumos, ancorado no saber de outros.
Sem o pretender, faz parte da plêiade de autoridades que entram na vida cultural, com a leveza de nunca se imporem, mas com direito a nunca estarem a mais, por nunca serem dispensáveis, porque as leituras que nós fazemos já ele as antecipou: se alguma das dele saltámos, corremos o risco de perder as associações que a ele lhe fluem mansamente. Personalidade ímpar na paridade dos dias, a ela nos habituámos, sem nunca a dispensarmos, pois sem ela nos sentiríamos mais pobres. Acompanhamo-lo como romeiros de longa caminhada e, integrados no seu percurso, facilmente nos apercebemos de que, com ele, vemos mais longe (ao modo de Bernardo de Chartres – quando mediu a estatura dos seus mestres pela altura dos seus ombros).
Efectivamente, Mário Martins (dois nomes indissociáveis) tornou-se familiar a sucessivas gerações. Ainda lembro o dia em que ele entrou nos meus caminhos de adolescente, quando eu ainda mal entendia os modos como se exprimia ele, na sua meia-idade; só decorrida uma vintena de anos me reencontrei com ele em terrenos de medievalidade para por ele acertar o passo dos textos e dos (des)caminhos destes – fosse quando o interpelei sobre uma frase que ficara na notícia sobre o Livro dos vinte e quatro milagres da Virgem Maria (afinal, vinte e dois, numa estrutura de 15 + 7), fosse quando partilhei com ele o reconhecimento da identidade do scriptorium alcobacense em traços da encadernação medieval, fosse quando me entregou as fotografias do manuscrito do Horologium Fidei, de André do Prado, para me confiar a edição desse tratado.
Dotado de espantosa memória dos textos (que lhe permitia tecer associações a perder de vista), Mário Martins saboreava a palavra e dela fazia alimento de vida, possuía uma viva sensibilidade poética (para acolher as imagens da natureza e entender as subtilezas da linguagem), manejava como poucos uma vibrante ironia (para se rir de si mesmo e dos outros) e entendia, sem angústia, a resiliência do tempo (dos homens e das suas coisas), caminhando serenamente ao encontro do Eterno (com nome), pois se reconhecia ancorado nos reflexos da graça divina que sentia oferecida generosamente aos homens. Não vivia de sistemas especulativos, mas da sublimidade das pequenas grandes coisas – as flores do jardim, a sementeira dos campos, uma iluminura dum Livro de Horas, um pequeno conto popular, uma narrativa de milagres, um esboço de epopeia ou uma cantiga de amigo, uma lenda que viajou no tempo ou uma fórmula guardada intangível e mal percebida, um texto surpreendido em testemunho único ou um romance colhido em terra distante, onde via refractados ecos de tempos longínquos. Tinha paixão pela leitura e pela escrita – esta como resposta àquela, aquela em actos múltiplos, em prolongamento da sua própria interioridade, em sintonia amigável com qualquer autor dos textos, que lia e reflectia em recensões literárias dilatadas pela cordialidade, em coincidência com o autor que lhe vinha ao encontro. Por sábio e amigo, o seu nome permanece: "memoria eius non recedet et nomen eius requiretur a generatione in generationem" (Eccl. 39, 13).
Aires A. Nascimento
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